VII - A ARTE DO "COMO"
"A arte não representa o visível, mas o torna visível"
Paul Klee
Nas últimas três décadas, após uma época de quase esquecimento desde os anos
vinte, o interesse do público e dos profissionais na abordagem de Rudolf Steiner à
arquitetura tem adquirido um nível internacional. Há cada vez mais publicações
sobre o tema, e cada vez mais projetos realizados, que procuram pôr em prática o
"funcionalismo orgânico" inaugurado em Dornach.
Os exemplos escolhidos demonstram que há nisso uma grande diversidade de
realizações, bem como de idéias inerentes. Se compararmos o seminário de Järna
com a escola de Überlingen, quem diria que a fonte de inspiração é a mesma? É
evidente que, pelo menos nos bons exemplos, esta fonte de inspiração não é um
vocabulário de formas fixas, "pré-fabricadas", ou uma metodologia rígida,
dogmática, que leva a resultados estereotipados. A "inspiração" não é um conjunto
de regras do jogo ou de teoremas que prometem, erradamente, oferecer soluções
para tudo.
Ao seguir os caminhos desta arquitetura orgânica, o desafio é enfrentar cada novo
projeto, cada tarefa arquitetônica, com abertura, sensibilidade, até ingenuidade,
com uma vontade de servir e não de dominar, e sem qualquer preconceito acerca
do resultado. Temos que ser sensíveis às realidades fora do nosso alcance e que
determinam um projeto: o uso, as pessoas que nele vivem e trabalham, (e
especialmente as suas necessidades anímicas e psicológicas), o ambiente físico,
tudo que faz o "gênio do lugar", desde clima, vegetação, topografia, até as
qualidades mais sutis e imateriais. Temos que trazer dentro de nós a sensibilidade
ao orgânico, o amor conjugado à observação exata dos fenômenos da natureza e de
suas incessantes transformações. Temos que desenvolver, dentro de nós, a
disponibilidade, maleabilidade e coragem de impregnar com aquela qualidade de
processo, de acontecimento, de metamorfose que a natureza sempre tem, as
nossas criações de arquitetura. E precisamos ter, claro, a procura de beleza, de
harmonia, de expressividade nas formas, nas proporções, nas cores - e o receio das
coisas inoportunas, berrantes, exageradas - que o bom arquiteto sempre teve.
Então haverá esperança de que os nossos projetos possam ter algo da qualidade
orgânica-processual e expressiva-funcional que Steiner vislumbrava. A Arquitetura
Steineriana não é teoria, convicção, dogma - é um caminho onde é preciso ir, um
método de trabalho que é ao mesmo tempo um método de autotransformação. Por
isso ela se define melhor em termos de processo, de atitude (o que inclui a pessoa
a projetar), do que em termos de regras abstratas e teoremas. Como já dissemos,
ela encontra cada vez mais interesse pelo mundo afora, e parece ter, afinal, o seu
lugar na arquitetura do século vinte, relevante quanto às idéias subjacentes,
embora modesta em número de projetos realizados.
Como compreender melhor este "lugar"? Voltando ao quadro global do
desenvolvimento da arquitetura moderna, conforme esboçado no primeiro capítulo,
parece, à primeira vista, que a corrente Steineriana está em concordância com
certas tendências e em antítese com relação a outras.
A fase pioneira da arquitetura moderna, antes e depois da virada do século, trouxe
muitas idéias e abordagens cheias de potencialidades - embora hoje em dia
aparentemente desaparecidas, pelo menos das correntes dominantes - cujos
elementos continuam vivos dentro do quadro da arquitetura antroposófica. Não
propomos que este fato seja uma referência histórica pretendida por R.Steiner, mas
as entendemos como tendências inerentes ao Espírito da nossa época moderna e
que muito naturalmente são retomadas por diversos artistas, em diversas
correntes.
A ênfase colocada no impulso artesanal e sua implicação inovadora a nível social
(vide a escola de Nant-Cwm) evoca as intenções de William Morris. O uso de uma
linguagem formal libertada da exclusividade ditatorial, de elementos geométricos
ou de heranças históricas, e o forte desejo de introduzir "vida" nesta linguagem, são
um elo com Gaudi e com a Arte Nova. Notemos, contudo que Steiner foi o único
que procurou inspiração no método da natureza (que é a metamorfose), evitando a
simples cópia das formas vegetais ou animais. No funcionalismo de Rudolf Steiner,
que procura dar um caráter e um "gesto" individual a cada projeto, capaz de
exprimir o seu uso, a sua função, e de evitar a "embalagem" e o disfarce, o "form
follows function" de Louis Sullivan encontra uma realização certamente mais
verdadeira do que na maior parte das arquiteturas que hoje em dia são chamadas
funcionalistas. O ideal da Obra de Arte Integral, em que a arquitetura oferece um
fundo e um palco para todas as artes, plásticas ou musicais, e à volta da qual
germina toda uma nova cultura, continua presente na arquitetura das escolas
Waldorf, nos seminários antroposóficos, e no referido banco em Amsterdan. Muitos
pioneiros daquela época vislumbravam uma renovação cultural em grande escala,
desempenhando a arquitetura um papel fundamental e integrador. E o que
sobreviveu desse ideal hoje? Pouco mais do que uma lembrança saudosa (o
interesse crescente dos estudiosos e do público em geral pelos expressionistas, pela
Arte Nova etc.) e as realizações inspiradas pela Antroposofia.
O que está por trás das novas perspectivas iniciadas pelos referidos pioneiros,
senão uma visão mais ampla, mais diferenciada do Ser Humano? Se nós admitimos
que o homem tem uma dimensão espiritual, evolutiva, criadora, um precisaraprender,
precisar-aperfeiçoar, uma aspiração invencível de procurar beleza,
nobreza de ser, então a questão do homem-máquina e do homem-animal já não se
põe. Já dissemos no início do livro, que a questão da arquitetura do nosso século
está inseparavelmente relacionada com a imagem que o homem moderno tem de si
mesmo: é o "Conhece-te a ti próprio!" Assim o homem terá uma compreensão
mais clara para o ambiente que cria à sua volta, através da arquitetura, que
naturalmente será diversificada e às vezes contrastante, pois são muitas as
imagens do Homem em que, consciente ou inconscientemente, os arquitetos de
hoje se baseiam. Ao construir o seu ambiente, o homem põe um espelho à sua
frente.
A nosso ver, arquitetura não é um mero resultado de dados técnicos, sujeito apenas
às leis da engenharia, dos condicionantes prático-funcionais, da rentabilidade *l9.
Arquitetura não é fazer uma máquina, um aparelho, e não se apresenta como tal,
por muita estética que uma máquina possa ter. Arquitetura não é fazer objetos
estéticos (por muito requintados que sejam), jogar abstratamente com a geometria
das formas ou com os seus significados e conotações. Arquitetura não é satisfazer
desejos ou caprichos pessoais, ou interesses egoístas, como na publicidade.*20.
O arquiteto moderno, de modo geral, traz dentro de si duas figuras-sombra que
tentam constantemente desviá-lo do seu caminho: a figura cinzenta do engenheirotecnocrata
racional, que só conta com fatos e pouco mais, e a figura cintilante do
artista genial, que procura a realização das suas idéias favoritas (que muitas vezes
são as da moda) Para um, só conta a parte material, quantificável, lógica; para o
outro, só a parte formal interessa. As cidades deste mundo manifestam em
abundância estes dois extremos, e os arquitetos sabem por experiência própria
como se sentem puxados ora para um lado, ora para o outro.
Entre estes dois pólos, como é que se pode definir um justo meio?
Rudolf Steiner demonstra nos seus projetos realizados, que arquitetura não é nem
uma submissão aos fatores materiais e lógicos, nem aos fatores formais e
individualistas. Excesso de "lei" leva ao constrangimento, à rigidez. Excesso de
"movimento" leva à desorientação, à ilusão. A metamorfose como princípio criador
de linguagens arquitetônicas representa um equilíbrio entre os dois pólos; ela é "lei
em movimento" e "movimento conforme uma lei". A natureza tem a sua infinita
sabedoria para garantir este equilíbrio no reino vegetal e animal. Na arquitetura, o
princípio impulsionador é o Ser Humano, ele mesmo em evolução. É a este Ser
Humano que a metamorfose procura servir, através de uma justa interpretação da
função do edifício a realizar, e através de um relacionamento ativo, inspirador e
harmonioso entre os elementos da arquitetura. Assim surge uma verdadeira
liberdade de poder descobrir a cada passo um terceiro caminho entre os referidos
dois pólos.
Esta liberdade não é arbitrariedade, não é mera falta de condicionantes exteriores.
Podemos fazer livremente esta ou aquela escolha, mas somos responsáveis pelo
resultado. A responsabilidade é grande: o ambiente físico - e arquitetônico! - de
hoje, produz, em grande parte, o homem de amanhã, a sua consciência, o seu
estado anímico, a sua saúde física. A influência é subconsciente mas muitas vezes
repetida pela vivência diária, e por isso poderosa. Dizer isso não é pretensão ou
exagero, mas o constatar de um simples fato psicológico, para o qual Steiner
também já chamara a atenção. O homem cria a arquitetura e a arquitetura cria o
homem.
Já dissemos que o que conta é o Ser Humano em desenvolvimento. Na filosofia de
Rudolf Steiner, o caminho iniciático, de auto-aperfeiçoamento, de desenvolvimento
interior e meditativo, ocupa um lugar central. Na sua arquitetura, a qualidade
evolutiva processual é essencial, numa tentativa de estimular atividades interiores.
Uma das primeiras etapas neste caminho iniciático é o conhecimento, a visão direta
do elemento vivo, ou seja, do domínio "etérico". Na arquitetura de Rudolf Steiner,
este elemento vivo já está presente na maneira como as formas se ligam a outras,
na metamorfose. A nossa época exige um alargamento da consciência humana,
que eventualmente levaria a uma compreensão do domínio vivo, além das
fronteiras onde a ciência de hoje pára. A Antroposofia procura abrir este caminho
para o alargamento da consciência, e a arquitetura de Rudolf Steiner proporciona
vivências "alargadas", com formas que parecem vivas ou até conscientes. Isto é o
lado dos usuários da arquitetura, ou seja, de todos nós.
Do lado dos profissionais ligados à construção, é preciso dizer que não é muito fácil
fazer telhados como os da casa "Duldeck" ou da escola em Überlingen. Mas o
fenômeno "dificuldade" se desdobra em obstáculo e desafio. Há dificuldades e
desafios que valem a pena, num mundo que parece ficar cada dia mais monótono, e
nestes dois exemplos e em muitos outros, o arquiteto tem plena oportunidade de
usar os seus talentos de engenheiro (na realização geométrica, estrutural e
material) e de artista (na procura de equilíbrio das formas fluentes). O diálogo
criativo entre engenheiro e artista, seja uma só pessoa ou sejam várias, pode
recomeçar. Até os operários, carpinteiros, pedreiros etc. se manifestam muitas
vezes profundamente satisfeitos por poderem trabalhar mais criativamente, fugindo
da rotina que lhes cerceia a sensibilidade ao longo da vida profissional *21. Eles
descobrem capacidades que não sabiam possuir! Não é exagero dizer que aqui se
abre a perspectiva de um futuro impulso social, onde as pessoas que trabalham
numa obra serão outra vez artistas, no verdadeiro sentido da palavra.
Não pretendemos que as obras ditas antroposóficas sejam perfeitas, livres de falhas
ou de inconseqü.ncias. Mas temos a certeza de que os impulsos de Rudolf Steiner
na arquitetura são relevantes e inspiradores, hoje, no limiar dos anos noventa e na
dramática perspectiva da luta pela identidade do homem. Vale a pena redescobrir
as propostas de Steiner. E vale a pena redescobrir o panorama da arquitetura
moderna à luz destas idéias.
Referências:
19- Bota-se a tendência, nas universidades em numerosos paises, integrar a
formação de arquitetos nas faculdades de engenharia, e de enfraquecer os
tradicionais laços com as Belas Artes.
20- Sobre a questão de lógica, racionalismo por um lado, e espontaneidade,
sensualismo por outro lado, recomenda-se o tratado de Friedrich Schiller,
contemporâneo de Goethe
“Über die ästhetische Erziehung des Menschen” (“sobre a educação estética do
homem”)
21- Um caso destes, nas obras da escola Waldorf de Kiel, Alemanha, foi relatado ao
autor pelo seu arquiteto, Winfried Reindl.
Bibliografia
Devido à escassez de literatura sobre o tema em língua português as publicações
são referenciadas, onde possível, em várias línguas. Esta bibliografia não pretende
ser completa. Vide também a literatura mencionada nas ANOTAÇÕES.
Conferências de Rudolf Steiner
- 9.11. 1898 “Goethe als Vater einer neuen Aesthetik”, publicado em “Kunst und
Kunsterkenntnis”, Rudolf Steiner-Verlag Dornach 1961; ingl. “Goethe as Founder of
a New Science of Aesthetics”, Anthroposophical Publishing Co. London 1922.
- 28.12. 1914 - 4.1. 1915 “Kunst im Lichte der Mysterienweisheit” Rudolf Steiner
Verlag Dornach 1980; ingl. “Art in the Light of Mystery Wisdom”, Rudolf Steiner
Press, London, 1970; franc: “L’Art à la lumiere de la sagesse des Mystères” Ed.
Anthroposophiques Romandes, Genève 1987.
- 28.11. 1919 “Questões culturais”, publicado em “O Futuro Social”, Editora
Antroposófica, São Paulo.
- 2.16.10. 1920 “Der Baugedanke von Dornach”, (o conceito arquitetónico de
Dornach 1942.
- 28. e 30.12 1921 “Stilformen des Organisch-lebendigen” (“Um estilo de formas
vivas e orgânicas”), Phil.-anthr. Verlag, Dornach 1933
- 18.5.-9.6. “Das Künstlerisch in seiner Weltmission” Rudolf Steiner Verlag,
Dornach 1982, Ingl: “The Arts and their Mission”, Anthroposophic Press, New York
1964.
Livros de outros autores
- Hagen Biesantz, Arne Klingborg “Das Goetheanum-Der Bau-Impuls Rudolf
Steiners” Phil.-Anthr. Verlag, Dornach 1978. Franc: “Le Goetheanum-L’ Impulsion
de Rudolf Steiner en Architecture”, Ed. Anthroposophiques Romandes, Geneve
1981;
- Rex Raab, Arne Klingborg. Ake Fant: “Sprechender Beton”Phil.-Anthr.Verlag,
Dornach 1972. Ingl: “Eloquent Concrete” Rudolf Steiner press, London 1979.
(sobre o II.Goetheanum)
- Erich Zimmer “Der Modellbau von Malsch” Verlag Freies Geistesleben Stuttgart
1979. (sobre a “maquete de Malsch”, um precursor do I.Goetheanum).
- Geog Hartmann “Goetheanum-Glasfenster” Phil.-Anthr.Verlag, Dornach 1971.Ingl:
“The Goetheanum Glass Windows”, Dornach 1972; Franc. “Les vitraux du
Goetheanum” Dornach 1973. (Sobre os vitrais).
- Rex Raab, Arne Klingborg: “Die Waldorfschule Baut”, Verlag Freies Geistesleben,
Stuttgart 1982; franc: “Bâtir pour la Pédagogie Steiner”, Ed.Anthroposophiques
Romandes, Genève. (sobre a arquitetura das escolas Waldorf).
- P. Ferger,J. Elffers,M.Schuyt: “Rudolf Steiner und seine Architektur DuMont
Buchverlag Köln 1979.
- Chistian Leclercq: “L’ Architecture et son rôle educatif” Éditions Triades, Paris
1979.
- Hans-Jürgen Schleicher: “A chitektur als Welterfahrung” Fischer
Taschenbuchverlag Frankfurt a.M. 1987.
- Ake Fant, Arne Klingborg: “Leben in der Architektur unserer Zeit.” Verlag
Urachhaus, Stuttgart 1985.
- Michael Bockemühl “Die Goetheanumbauten in Dornach” Verlag Freies
Geistesleben Stuttgart 1985.
- Armin J.Husemann: “Das Wort baut - Goetheanumformen als sichtbare Sprache”
Verlag Freies Geistesleben Stuttgart 1988.
- Johann Wolfgarg Goeth: “A Metamorfose das Plantas” Edições Religião e Cultura,
São Paulo 1985.
- Johann Wolfgang Goethe: “A obra Científica”, Editora Antroposófica São Paulo
1984.